Da semelhança do alfabeto com os números primos







Da semelhança do alfabeto com os números primos
Jorge Xerxes

Centelha primordial





Aconteceu por obra de alguns versos escritos em momentos de embriaguez confessa; por obra de esses terem abandonado os recônditos de um guardanapo sujo e caírem na rede mundial de computadores, que recebi, dia desses, aquele suspeito volume envolto em papel pardo. O título “Pára-Raio de Loucos” de Fábio Amorim de Matos Júnior – que responde pela alcunha de B. –, publicado pela Assis Editora no ano de MMIX, antecipava, de certo modo, a astúcia premeditada da qual eu quedaria vítima.

De alguma forma, B. havia perscrutado meus atos pregressos e atinado que eu teria a inclinação para os pensamentos e atitudes inebriantes. De modo que, aquele seu livro poderia, sem dúvida, servir de catalisador para a experiência.



Iniciação



Uma apreciação convencional de obra tão inusitada mostrou-se infrutífera e tive de lançar mão de técnicas não ortodoxas de leitura. Inúmeras estratégias postas à prova levaram-me a devaneios vãos. Até que, enfim, num ato de extremo desespero e insensatez, amarrei os meus pés ao lustre da pequena sala de estar – valendo-me do cabo elétrico de meu ferro de passar roupa, que a essa altura de nada mais me serviria – e recomecei pelas epígrafes e recomendações de personagens ilustres.

Como que assaltado pela magia dos microchiroptera, um estranho senso de ecolocalização assaltou-me a percepção acrescentando elementos que possibilitaram a expansão dos sentidos. Então, meio que por mágica, meio que ao acaso, compreendi o magnânimo plano que B. havia traçado para a viagem.

Compreendi, de súbito, que Filomena e o capoeirista do conto “Engano” assumiam as designações de Palmira e o rapaz do Chevrolet prateado, respectivamente, noutro texto seu – “O Bolso”. E isso seria pouco, se não houvesse mais: Nestor, de “Casa Alemã”, era o mesmo ente que respondia pela alcunha de Tufão (Lúcifer ou Satanás?) em “Engano” e Veritas – noutro canto (ou conto?). B. bem sabe que não é possível construir uma morada sólida sobre amontoados de papéis.

Mas hei de convir que concorde com o autor, especialmente, sobre o seguinte excerto, extraído de “A Quarta Verdade”: Embora nenhuma dessas observações tenha me permitido avançar na investigação, ao menos, devo reconhecer, permitiram-me elas encontrar minha terceira certeza provisória; a qual indica, definitivamente, que o segredo do universo não se encontra entre os números.
Afinal, o que esperar de um autor como B., que sempre viveu sob as restrições imputadas aos moradores da cidade de Nefelococigia?

– Nossa, Dinha! Qui partido bão!
– Bão qui num é pra nada. Lôco sim qu’eli é.
– Cum’assim? Eli num bati bem?
– Pois’é, num regula muito não: é poeta!
– Maise qui dispirdício!
– Puis’intão, j’éra avuado di antis, dispois dus acuntecido intão...
– Acuntecido?
– Foi, a muié dele morreu parinu.
– Deus do Céu, coitado!
– I pra piora’inda mais, o fio qui broto vêi mêi arretardado!
– Mais u ingastaio maió é outro...
– Qual’é Dinha?
– ...di tanto qui a doidura subiu pra menti, eli crio o fio comu si o minino fossi um cachorro.
– Virge Santíssima! Deus mi livre guarde!
– Amém!



A prática da magia



Permaneci de ponta cabeça; com os pés presos próximo à altura do teto, feito um morcego. Na falta de sangue, o que eu bebia mesmo era vinho tinto, de canudinho; ao longo de noites consecutivas. Compreendo dois fatores que favoreceram sobremaneira a evolução do meu senso de ecolocalização – viva o efeito Doppler! – multiplicador da consciência: (a) maior irrigação sanguínea cerebral; (b) a luminária, que agora clareava de baixo para cima.

Os números primos são os átomos da aritmética. Os gregos foram os primeiros a perceber que qualquer número natural, exceto o um, pode ser gerado pela multiplicação de números primos, então denominados “blocos de construção”. Número primo é o número natural que tem exatamente dois divisores: o número um e ele mesmo. Os dezesseis primeiros números primos positivos são: 2, 3, 5, 7, 11, 13, 17, 19, 23, 29, 31, 37, 41, 43, 47 e 53.

Prossegui então com os experimentos antevistos por B.; lendo e relendo de diferentes maneiras àquela obra de natureza singular. De início, lia o livro de ponta cabeça, imaginando que, estando eu próprio nessa posição, isso possibilitaria uma compreensão corrigida, com relação ao referencial Terra: ledo engano! Por fim, selecionava trechos. Passei a picar o livro com uma tesoura e colar os retalhos em alvas folhas de papel. Com o tempo, percebi que era possível criar outras obras a partir dos trechos originalmente concebidos por B. Consecutivamente, dediquei-me a elaborar trechos cada vez mais efêmeros. Por vezes eram palavras apenas. Outrora, sílabas isoladas que, combinadas com outras sílabas, produziam palavras que B. já as tinha imaginado, mas que só agora eu as percebia em extensão a real dislexia.

Em estágio avançado de minha loucura, quando já não me bastavam as sílabas: eu recortava letras isoladas do livro e as organizava em palavras, que viriam a ser sentenças, pretensas estrofes de complexos raciocínios outros. Enfim, sabemos que nosso alfabeto latino é composto de vinte e seis letras:

a b c d e f g h i j k l m n o p q r s t u v w x y z

Mas descobri – sob a influência de B. – que dessas, em verdade, apenas vinte e duas são os átomos das palavras. Visto que as letras d, h, m e w são compostas de outras letras – os blocos de construção – letras primas, objetos de minha própria insanidade.

a b c cl e f g ln i j k l nn n o p q r s t u v vv x y z



Metamorfose



Inclepenclentennente clo caráter subjetivo que se atribui às letras, às palavras, às sentenças e ao próprio encacleannento lógico clos raciocínios; entenclenclo-se a literatura conno unn espaço transcenclente clo real; unn conjunto que acrescenta ao quoticliano clos clias; ao pesaclo farclo cle nossas viclas innputaclas pura e sinnplesnnente pelas leis naturais – alénn claquelas contingências cle nnercaclo, que nós nnesnnos nos innputannos –; venlno afirnnar que pára-raios são proviclenciais a alocação cle elennentos subjetivos e a sobrevivência nesse nnunclo, parco clas icléias: a unn nnergullno profunclo no século XXI.

_________________________________________________________________________

Resenha de Pára-Raio de Loucos, BORBOLETA. Uberlândia: Assis, 2009. 152 p.