A imagem invertida da capa
nos proporciona outro ponto de vista, não obstante os mesmos elementos. As
crianças, ao brincarem de ver o mundo de cabeça pra baixo, manipulam a
realidade a seu bel prazer: assim dominam os horrores que a cena contiver ou os
controlam, alocando-os nos personagens de má índole oferecidos pelas histórias
infantis.
O escritor é um criador não apenas de conceitos
e objetos, principalmente de novos esquemas de pensamento. No último conto
Mario escreve, em um segundo tempo, as reflexões do personagem:
Espero pela luz da manhã. Sei pedaços de uma história que
talvez seja a minha, talvez seja a da menina que me afaga o cabelo todas as
manhãs, talvez seja a da senhora que me traz a comida ao quarto. Uma história bonita
que se apaga.[Tempo em branco]
O artista tenta decifrar o
mundo e sua sensibilidade vai se valer da criatividade e do talento para representá-lo:
Não
conseguiu quebrar a forçada ligação que o mantinha agarrado pela vida. Era um
movimento que haveria de romper com um estado lastimável para entrar num
período de descanso. Ele procurava quebrar a visceral inércia do corpo em tomar
nas mãos a decisão de se soltar. O velho estava preso em si mesmo. [Pulseira
Electrónica]
A arte concilia a visão adulta com o olhar inocente que contacta a sensação primeira:
Um homem
mantinha-se imóvel, de pé, a observar o fluxo de gente que vinha no seu
sentido.
A
inacção interrogava a velocidade das pessoas que passavam. Era uma questão
mecânica. Aquela peça havia deixado de funcionar como previsto. As pessoas
desviaram-se e rejeitaram a anomalia. Não podia ser de outra forma. [Last man standing]
O escritor é um artista que trabalha no campo da linguagem, no campo do símbolo. Suas palavras têm significado e
referem-se ao sensível. Mobilizando suas
experiências e o espírito inventivo, é o sujeito que
parte de um conhecimento objetivo e atinge o objeto através da mensagem - embora
não explícita – levada ao leitor por suas palavras encadeadas.
Antropomorfizar uma árvore
é uma das excelentes estratégias de Mário:
(...) agitando os seus longos braços raivosos,
irados por estar presa ao chão (...)correndo atrás de nós, com vontade de nos
agarrar entre os seus braços, para nos chicotear por termos, durante tanto
tempo, arrancado os frutos à sua carne. [O Fim da Inocência]
Os contos e as resenhas que Mario tem publicado em nossa revista são fruto
do trabalho
intelectual sobre um conjunto de sensações. Ao permitir
ao cérebro trabalhar perceptivamente, entretanto, ele deixa que se manifeste a consciência
pura, o puro ver – o olhar da inocência que, para a arte, não finda: Num ramo cabem
todas as palavras [As flores], como ele mesmo escreveu.
Parabenizamos Mário Rufino
pela bela jornada com a palavra. Gratos por sua presença em Letras et cetera e convite
para escrever este prefácio, que tanto nos honrou, desejamos muito sucesso nesta
nova fase.
Sonia Regina
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