Sonia Regina - prefácio de O Fim da Inocência e outros contos













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O Fim da Inocência e outros contos *


PREFÁCIO


A imagem invertida da capa nos proporciona outro ponto de vista, não obstante os mesmos elementos. As crianças, ao brincarem de ver o mundo de cabeça pra baixo, manipulam a realidade a seu bel prazer: assim dominam os horrores que a cena contiver ou os controlam, alocando-os nos personagens de má índole oferecidos pelas histórias infantis.
O  escritor é um criador não apenas de conceitos e objetos, principalmente de novos esquemas de pensamento. No último conto Mario escreve, em um segundo tempo, as reflexões do personagem:

Espero pela luz da manhã. Sei pedaços de uma história que talvez seja a minha, talvez seja a da menina que me afaga o cabelo todas as manhãs, talvez seja a da senhora que me traz a comida ao quarto. Uma história bonita que se apaga.[Tempo em branco]

O artista tenta decifrar o mundo e sua sensibilidade vai se valer da criatividade e do talento para representá-lo:

Não conseguiu quebrar a forçada ligação que o mantinha agarrado pela vida. Era um movimento que haveria de romper com um estado lastimável para entrar num período de descanso. Ele procurava quebrar a visceral inércia do corpo em tomar nas mãos a decisão de se soltar. O velho estava preso em si mesmo. [Pulseira Electrónica]

A arte concilia a visão adulta com o olhar inocente que contacta a sensação primeira:

Um homem mantinha-se imóvel, de pé, a observar o fluxo de gente que vinha no seu sentido.
A inacção interrogava a velocidade das pessoas que passavam. Era uma questão mecânica. Aquela peça havia deixado de funcionar como previsto. As pessoas desviaram-se e rejeitaram a anomalia. Não podia ser de outra forma. [Last man standing]

O escritor é um artista que trabalha no campo da linguagem, no campo do símbolo. Suas palavras têm significado e referem-se ao sensível. Mobilizando suas experiências e o espírito inventivo, é o sujeito que parte de um conhecimento objetivo e atinge o objeto através da mensagem - embora não explícita – levada ao leitor por suas palavras encadeadas.
Antropomorfizar uma árvore é uma das excelentes estratégias de Mário:

(...) agitando os seus longos braços raivosos, irados por estar presa ao chão (...)correndo atrás de nós, com vontade de nos agarrar entre os seus braços, para nos chicotear por termos, durante tanto tempo, arrancado os frutos à sua carne. [O Fim da Inocência]

Os contos e as resenhas que Mario tem publicado em nossa revista são fruto do trabalho intelectual sobre um conjunto de sensações. Ao permitir ao cérebro trabalhar perceptivamente, entretanto, ele deixa que se manifeste a consciência pura, o puro ver – o olhar da inocência que, para a arte, não finda: Num ramo cabem todas as palavras [As flores], como ele mesmo escreveu.
Parabenizamos Mário Rufino pela bela jornada com a palavra. Gratos por sua presença em Letras et cetera e convite para escrever este prefácio, que tanto nos honrou, desejamos muito sucesso nesta nova fase.

Sonia Regina




* RUFINO, Mario -  O Fim da Inocência e outros contos - Lisboa, 2012




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