Conforme assevera Jean-paul Sartre, em O que é a literatura, “um dos principais motivos da criação artística é certamente a necessidade de nos sentirmos essenciais em relação ao mundo”.E nos sentimos essenciais em relação ao mundo, justamente, quando nos sentimos responsáveis pela produção do próprio mundo, isto é, quando nos sentimos responsáveis pelas relações estabelecidas entre as coisas, quando nos sentimos responsáveis pelas próprias contingências. Nesse sentido, seria razoável pensar que somente ao escritor – na medida em que é ele quem ordena, quem estreita relações e quem confere unidade às coisas –é concedido manter relação tão profunda com a obra literária, como se o simples ato de escrever fosse suficiente para posicioná-lo frente ao mundo, para preencher sua angustia e carregar de sentido sua própria existência.
Entretanto, adverte-nos o filósofo que embora o escritor possa se alegrar com esta composição ou aquela relação estabelecida entre as palavras, nunca ele poderá obter o prazer estético resultante de sua própria produção, ou seja, nunca lhe será dado apreciar com propriedade sua obra. Isso ocorre pelo fato de que a ação de ler implica em relações de previsão e espera, de produção e desvendamento, operações que não podem ser realizadas, ao mesmo tempo, por uma única pessoa. Assim sendo, visto que o escritor não possui o recuo exigido para a apreciação de sua própria produção artística – uma vez que as relações postas no produto identificam-se com sua própria subjetividade –, ele nunca poderá escrever para si. Vale ressaltar que, com tal ressalva, Sartre não pretende distanciar o escritor de sua obra, mas sim apontar que a realidade da obra não coincide com sua produção, isto é, não depende unicamente do escritor para sua realização, para que adquira a significância de sentidos que lhe é latente. Para que tal ocorra, aponta Sartre, é preciso que ela conte com a anuência de um terceiro, a saber: o leitor. Uma das razões que corroboram tal interdependência está no fato de que a obra – embora sempre se apresente em suspenso ao artista –sempre se apresenta como definitiva para o leitor, cabendo a ele realizar o outro pólo do processo literário: “(...) a operação de escrever implica a de ler, como seu correlativo dialético, e esses dois atos conexos necessitam de dois agentes distintos”.
Assim sendo, na medida em que a existência do objeto de arte depende de uma conjugação de esforços entre o escritor e o leitor, Sartre identificará o momento da leitura como uma síntese entre a percepção e a criação: por um lado, o leitor ao desvendar participa da criação do objeto, por outro, a direção para sua criação é feita pelo escritor. Note-se a solidez com que o filósofo realiza a junção entre os dois pólos da relação: enquanto o leitor depende do escritor para determinar a condução do desvendamento de seu imaginário, o escritor, por sua vez, depende do leitor não apenas para dar existência à sua obra como para a manifestação de sua essencialidade em face do objeto criado – essa relação de confiança que o autor deposita em seu leitor será designada por Sartre como um apelo, um apelo posto entre duas liberdades.
Assim, para o leitor tudo está por fazer e tudo já está feito. (...) Uma vez que a criação só pode encontrar sua realização final na leitura, uma vez que o artista deve confiar a outrem a tarefa de completar aquilo que iniciou, uma vez que é só através da consciência do leitor que ele pode perceber-se como essencial à sua obra, toda obra literária é um apelo.
Logo, o apelo que o autor faz à liberdade de seu leitor é um apelo para que este continue a sua obra, para que desvende e torne objetiva a subjetividade que aquele depositou na linguagem. Nesse sentido, constitui também, como já dito, um apelo para a existência, para a essencialidade do escritor em relação a seu texto. Nessa medida, o leitor também possui responsabilidades em relação à obra lida; de fato ele nunca é obrigado a lê-la, mas quando o faz não pode se manter passivo na produção da mesma. Eis como Sartre concebe a atitude da leitura como ativa em relação à obra, como determinação da existência e extensão dos projetos do autor.
A concepção literária de Sartre convence-me em vários aspectos, entrementes, neste momento, gostaria de destacar apenas um deles, o qual se dispõe mais diretamente ligado com nosso presente concurso: a interdependência entre autor e leitor para a realização da literatura.
O destacamento de um papel ativo ao leitor agrada-me sobremaneira não apenas pelo fato de que, antes de escritores, todos somos leitores, mas, sobretudo, porque imagino ser esse um dos pontos distintivos da literatura. De fato, diferentemente do cinema, da pintura, do teatro, da escultura, da música e de tantas outras manifestações artísticas, a literatura exige de seu público mais do que o simples posicionamento frente à obra acabada, mais do que a mera interpretação do produto dado: a obra literária exige que o leitor complete, no seu imaginário, aquilo que ao escritor não foi permitido determinar. Nesse sentido, a apreciação estética da obra literária vincula-se à exigência de que o leitor dê sentido ao mundo pré-criado pelo escritor.
Penso que um reflexo banal da atividade do leitor frente à obra literária pode ser constatado na divergência entre qualquer tentativa de representação figurativa da obra escrita. Por mais que se tente ser fiel à descrição do escritor, toda e qualquer representação figurativa dos personagens ou das cenas está fadada ao fracasso no que tange à representação subjetiva do leitor. Tal impossibilidade deriva do fato de que, na literatura, a representação que o escritor apresenta das cenas e dos personagens multiplica-se pelo número indeterminado de leitores possíveis, pelo número infinito de subjetividades que se disponham a completar a obra. Evidentemente, tenho consciência de não ser exatamente disso que trata Sartre ao interpor o leitor como pólo essencial para a determinação da obra literária – por isso o alerta quanto à banalidade deste exemplo –, todavia, lanço mão do exemplo para caracterizar uma consequência interessante da relação estabelecida entre o escritor e o leitor em relação à obra literária: o fato de que a realização final da literatura, na medida em que se evidência no domínio da subjetividade do leitor, não aparece como dado acessível ao escritor; em outras palavras, por mais que o escritor delegue ao leitor a tarefa de conferir essencialidade em face de sua criação, ao escritor nunca será dado acesso a essa essencialidade..
Por isso minha satisfação quando a estimada Sonia Regina solicitou-me o envio de um de meus contos para que o mesmo fosse alvo de um concurso de resenhas. De fato, fiquei muito contente não apenas pela oportunidade de divulgação de meu trabalho, mas, sobretudo, por me encontrar frente a uma oportunidade rara de ter acesso à subjetividade de meus leitores. Evidentemente, não um acesso direto, que me capacite ou me permita tomar um recuo em relação a meu próprio texto a ponto de poder ser um autoleitor de mim mesmo. Mas, diria eu, um acesso indireto, o qual me auxiliasse, a partir da negação da multiplicidade de olhares sobre minha obra, na composição daquilo que meu próprio texto poderia, talvez, representar.
Além do mais, o presente concurso permitiu-me tomar parte em uma experiência inusitada, a qual culminou na inversão da relação estabelecida entre o autor e seu público. Tudo porque não se tratava aqui de um mero exercício de leitura, de um simples apelo do escritor à liberdade de seu leitor para que o mesmo lançasse olhos na leitura e desse cabo da obra. Mais do que isso, aqui o apelo fez-se quase que súplica, já que além de ler o texto (o que já seria per si difícil, visto tratar-se do fruto de um escritor menor), cabia ao leitor registrar seu juízo sobre ele. Em outras palavras, solicitava-se ao leitor que o mesmo abandonasse sua condição e se projetasse, como escritor, para o outro lado do tabuleiro. Como diriam os antigos: o belo é difícil. E aqui, mais uma vez, não se enganariam, visto ser justamente no cerne da dificuldade de um tal apelo que emerge aquilo que, a meus olhos, apresenta-se como mais belo neste concurso, uma vez que ao cumprir o que lhe foi pedido, isto é, ao tornar-se escritor, o leitor passa a devolver aquilo que lhe foi outorgado, já que também ele depende de um outro para que seu próprio texto adquira sentido. Nessa medida, o ímpar da história verifica-se no fato de que, pela vez primeira, pude me posicionar como o leitor ao qual competia terminar aquilo que meus leitores começaram a partir de minha própria obra. Concordando e discordando, levantando meu olhar subjetivo sobre eles, identificando o que acredito serem juízos verídicos e o que considero como exageros, enfim, levantando a bandeira da essencialidade ao apelo que meus outrora leitores faziam à minha liberdade. E a coisa não pára por ai, uma vez que agora, mais uma vez, cá estou eu, apelando para a liberdade de meus leitores, implorando para que, novamente, dêem sentido às palavras que apresento como reflexo das palavras que eles me apresentaram como resultado das minhas outras palavras...
Por tais razões, graças ao presente concurso, pudemos – eu e meus doze leitores – estabelecer um elo de cumplicidade que soa como um perpetuum mobileentre liberdades. Permitindo-me, neste encontro, apreciar o não-ser de nossos desencontros e construir uma pirâmide de quimeras, dando azo a um plano literário que funciona, para mim, como uma defesa contra o destino, como uma tentativa de fuga da contingência, como um saboroso projeto de má-fé.
* Borboleta é a assinatura literária de Fábio Amorim de Matos Júnior.
Escritor independente, Borboleta possui contos premiados pela Academia de Letras do Triângulo Mineiro e pela Secretaria de Cultura de Niterói. Com incentivo da Secretaria de Cultura de Uberlândia, Pára-raio de Loucos é o seu primeiro livro solo. Fábio Amorim, por sua vez, possui formação em Filosofia. Atualmente, trabalha em sua tese de doutoramento – sobre a antiguidade grega – e ministra aulas em curso de graduação desta mesma disciplina.