A poesia - a forma mais sublime de expressão -, de fácil memorização, prescindiu da escrita até o século XVIII, quando esta explodiu com o surgimento dos romances ingleses.
“consta-se que, ao pronunciar a palavra pela sétima vez, o jovem poeta se enamorou. e caiu nos braços da cadeira, adormecido, subjugado pelo lento amadurecimento do encantamento que ele próprio verteu. há quem diga que tal se deveu a factores estranhos ao próprio acto poético: as nuvens navegavam em direcção contrárias às leis da física reclamando a sua condição de transparência e irrealidade. a chuva subia e não descia, tentando aspirar à divindade e substituindo-se a aqueronte na passagem para o lado errado da existência”
Assim diz Jorge Vicente no Poema VI do Livro dos Antigos. Talvez, dos versos das obras do passado, talvez do paradigma cartesiano que varreu o singular e a diferença, condenando tudo à separação: corpo, alma e emoções, sujeito e objeto, ser humano e natureza, interioridade e exterioridade, o ‘eu’ e o ‘outro’ e assim sucessivamente. Expulsos o subjetivo, a emoção e o desejo como entraves ao conhecimento, o ser humano perdia-se de si mesmo e era condenado a uma solidão terrível.
Poderíamos supor que no seu canto seguinte, o Poema VII do Livro dos Antigos, segue dizendodessa crise profundamente enraizada no aniquilamento desses sujeitos destroçados por um paradigma científico que os fragmentava até as últimas conseqüências existenciais, criando-lhes uma máscara social para que não soçobrassem no devir do mundo e pudessem buscar a imagem do ‘eu’ em fuga e a cura da doença cognitiva da modernidade, provocada pela negação do olhar e da imaginação.
“o destino nunca se constrói
nem gilgamesh pode encerrar
o seu futuro numa única flor
talvez aquele que suba possa
viver outra vez.”
Jorge Vicente. In: Poema VII do Livro dos Antigos
A tentativa de resgate dessas dimensões subjetivas mais profundas dos seres humanos é expressa nas artes. Presente, esse ‘eu’ da modernidade.
“Vazio que se completa
na palavra cheia do tudo e do nada:
a perda...
Delasnieve Daspet. In: Sinais de vida e de morte...
Fraturado, cindido, fragmentado, um sujeito que vive se transformando a reboque de uma época pasma onde reina a incerteza, um sujeito que observa a realidade que se apresenta ora como onda, ora como partícula, e olha para si como num espelho, num mergulhar narcíseo, ao tentar compor um auto-retrato que, na verdade, lhe escapa, dado o movimento perpétuo do devir e a imagem que constrói a partir do olhar do Outro. Um sujeito que procura respostas.
“com uma nova
luminosidade, uma nova utopia
um novo modo de pressentir
aquilo que só cabe aos pássaros”
Jorge Vicente. In: Poema VII do Livro dos Antigos
“Mostro em linhas,
Rabiscos de minh alma
Versos antigos, guardados comigo.”
Delasnieve Daspet. In: Minhas Linhas
Tenta-se explicar como se chegou a ser-se o que se é, busca-se a imagem – que escapole - do que se é. Discursos teóricos e filosóficos como os de Freud, Lacan, Pichón-Rivière, Jung, Winnicott, Bachelard, Foucault, Deleuze, Guattari, Certeau, para citar alguns, estão presentes no pensar a subjetividade e o psiquismo em suas manifestações criadoras nos níveis individuais e coletivos.
“a arte do abandono não é ensinada
e nem sempre há versos à tona”
Sonia Regina. In:nem sempre há versos à tona
E se nos perguntamos “para quê?” e consideramos Platão e a lição do Fédon, reconhecemos que o homem é um ser exilado de seu verdadeiro eu, num movimento em que o Amor (Eros) é a energia que atua como força motriz, impedindo-o de esquecer, movendo-lhe os sentidos para o coração, nutrindo sua alma do que é da sua natureza.
“ à claridade do dia
em cada nuvem macia
aonde Eros se deita
e Hera, feliz, desperta!”
Maria_Petronilho. In: Festa de Gaia
“ E que esse sangue que é o mesmo em cada veia,
Nos assemelhe e nunca mais nos torne sós.”
Luiz Poeta. In: À Tua Semelhança
Mitos, religiões, filosofia: o homem que, em busca do que lhe dê sentido à existência, procura o sublime e o experimenta, através do imaginário, as imagens em movimento...
“peso oculto
como somente o seria
num pássaro quando pousa”
Cissa de Oliveira. In:Numa Folha Ávida
“Por querermos muito,
Por voarmos alto,
Voamos o vôo das águias”
Eunice Mendes. In: A ti, Pablo Neruda
“Como?” - perguntamo-nos. Sem respostas, suspeitamos que através da poiesis, da criação, da representação de desejos e afetos na linguagem e na imagem que narram a sua subjetividade.
“Harmonia sedas crepes e sonhos
Em pontas de pés e braços alados
És poalha de luz envolta em chamas”
Joaquim Evónio. In: O Corpo e a Alma
E é na linguagem e na imagem que habita a subjetividade. É nelas que se inscreve o “eu” poético, é nelas que se escreve o percurso de sua construção.
“a noite pode vir agora
que durmo prendado de ti “
Fernando Oliveira. In: para ti
Perguntar pelo permanente na natureza é como perguntar pelo resultado de uma obra de arte. Não se esgotam o sentido e a interpretação de um poema ou de uma pintura.
“Vós sois a semente
No tempo presente
Desta geração
Vossas mãos cansadas”
Euclides Cavaco. In: Doirada Homenagem
O escritor expressa a realidade que observa, imagina, inventa e interpreta. Questiona-a. E vai além. A realidade é um ponto de partida para ir mais além da compreensão de vida pelo que não é material e depende da relação e das interações, numa autonomia criativa que não separa o conhecer, ser e viver.
“Depois que a paixão passa,
a criatura fica exata e os anjos
inventam de ficar estáticos. “
Cissa de Oliveira. In:Uma Outra História
“E diz à ave que voa
Que nesta linda Lisboa
Teus irmãos velam por ti”
Joaquim Evónio. In: Heróica N´Gola
“esculpindo sinónimos
e criando neologismos
transgride a lei gramatical
simbólico até à exaustão”
Fernando Oliveira. In: paradigmas da poesia
Para ir mais além desse momento em que se atenta à utopia não desgarrada da realidade concreta e da própria ação cotidiana dos sujeitos - impregnada da ação coletiva pelo processo de construção e invenção de cada um, a par do mágico e do sagrado que o racionalismo moderno quis eliminar – o poema diz, pergunta, duvida: incessantemente.
“Segue firme, sem rimas, sem prosa
Segue livre, sempre nova.”
Eunice Mendes. In: Segue
“E te amar dentro da própria solidão.
Tanto espelho em uma casa tão enorme...”
Luiz Poeta. In: Abraç...Ânsias
“Ser português...
É ser diferente... É ter alma Lusíada
É saber estar ausente
E em qualquer lado...”
Euclides Cavaco. In: Alma Lusíada
“o que vale uma mão na mão
quando não se encontram”
Fernando Oliveira. In: intentos balsâmicos
É impossível se verificar a parte deliberada e a inconsciente, ainda que o leitor mergulhe nos subterrâneos da obra através do ‘eu’ poético em busca dos rastros do ‘eu’ do autor.
“Refreia tuas ânsias inquietas...
Poetas fazem parte de uma casta
Maluca... eles nunca traçam metas;
Só fazem poesia...e isto basta.”
Luiz Poeta. In: Critic... Arte
“quisera eu ser teu
quisera que fosses minha
cobiço-te.. cobiça-me”
Fernando Oliveira. In: cobiças
O leitor se projeta na obra, talvez desvelando um pouco da história das idéias do autor, um pouco desse ‘eu’ escrito que se relaciona com os processos sociais. Pressente-os quando se aproximam e se afastam na superfície estética do poema, através do timbre. E ao olhar do leitor é possível que não escape a interação entre a obra literária e a vida social, caso siga esse movimento do ‘eu’ sujeito, líquido e movente, através dos rastros de cunho estético.
“não me interessa a face plástica da estrela
endoidece-me o preço inflacionado do céu
(...)
interessam-me os valores lícitos das colheitas
os canastros repletos de milheiral
o enlace de quatro olhos cúmplices”
Fernando Oliveira. In: afectos e desafectos
Um indivíduo solitário que lê, um indivíduo solitário que cria: a herança da modernidade.
“nas
vertigens agrestes
de uma carícia. Só
os marinheiros amantes
são dignos do vento”
Jorge Vicente. In: Poema
Um individualismo questionado por Stuart Hall. Para ele, a identidade não rodeia um ‘eu’ coerente, é definida historicamente e contextualizada culturalmente. Uma combinação de temporalidades em que o processo histórico flui mais lento do que nas instâncias da sociedade.
“Como se fora canção,
Constrói a terra mais bela
Com tuas mãos de verdade
E as fecundas sementes
Do amor-libertação...”
Joaquim Evónio. In: No Pintcha, Amigo, No Pintcha
Michel de Certeau afirma ser a oralidade indefinidamente uma exterioridade sem a qual a escritura não funcionaria e que, por isso, a voz faz escrever. Segundo ele o indivíduo, por perder seu lugar, nasce como sujeito e então se coloca como produtor da escritura, da demarcação objetiva de um espaço próprio e da construção de um texto que tenha poder sobre a exterioridade da qual foi anteriormente separado.
“Voam rimas peregrinas
por entre os dedos deslizam
num átimo se desenham
onde seria que estavam? ”
Maria_Petronilho. In: Pátria-Mundo
Uma fronteira, esse lugar em que as temporalidades desencontradas adquirem substância em sujeitos sociais, protagonistas, classes, etnias, instituições, mentalidades, costumes, variações lingüísticas - igualmente desencontrados?
“É improvável a vida,
É impossível o riso,
É a incerteza de não existir...”
Eunice Mendes. In: A vida se dissipa, se esvai
Não há como discutir as fronteiras entre o real e a ficção sem trazer à baila a memória e o imaginário. A ficção é uma representação da realidade, um processo criativo submetido ao imaginário que, na obra literária, resgata a diferença latente na aparente semelhança.
E não estamos aqui para compreender e muito menos analisar as nuances da prática escritural dos poetas desta obra, nem a articulação dos mecanismos textuais utilizados por eles. Pretendemos apresentar parte do percurso de suas experiências literárias - poemas que representam e talvez delimitem um lugar de passagem nesse campo em que a imagem de si e a autoria se fazem presentes - e se desfazem - na possível reversibilidade de relações entre o confessional e o ficcional. O ‘eu’ poético é somente circunstancialmente análogo ao autor e, seja qual for a função a que se destina a escrita – informar, aconselhar, exortar, consolar –, o escritor, ao escrever, constrói-se enquanto sujeito.
Com palavras que se derrotam a poesia continuaria adormecida e não dizendo do infinito. Todavia, acorda da delicadeza com uma letra. Ousa, sílaba a sílaba, e viaja.
“não sigo com os pássaros
apenas calo a pedra que testemunhou
a destruição do poema
a essência da palavra
é aquela que o poeta imagina”
Jorge Vicente. In:Poema V do “Livro dos Antigos”
Há viagens possíveis e navegar é preciso. À procura do sentido, no tempo marcado pelas imagens embaralhadas nas horas, minutos e dias.
“Eis-me aqui, uma vez mais,
Plena e vazia
Nua, sem as maldades humanas,
Companheira da mesma estrada.”
Delasnieve Daspet. In: Eis-me...
Somos, todos, um poema em construção: sem limites a não ser a quebra da seqüência, quando o que nos domina é o ritmo.
“O vento pode ser frio
Gelar as águas do rio
E ondular as do mar”
Euclides Cavaco. In: Nas asas do vento
Nele e na imagem o poder das palavras, terras sem fronteiras que têm em algum ponto uma beira. Nela, em sua quietude geradora, de um momento secreto e íntimo com o fogo dos deuses, forjamos as letras.
“com a pulsação das naves
e nenhuma nostalgia
ela se solta
é um sol que vê por dentro
antes de acordar a forma”
Cissa de Oliveira.In: Um sol que vê por dentro
E o poema flui. De um diálogo entre versos e “eus”.
“Quem alguma vez
já ouviu
e sentiu
o feitiço que tu tens,
o poder que tu emanas,
como pode duvidar”
Joaquim Evónio. In: Batuque
Uma obra que reúne poetas de dois continentes através da língua é um enigma sem decifraçãopossível, que diz. Dizde uma caminhada individual e coletiva, real e metafórica. Diz de todos os “eus’ que interagem e circulam nos versos, diz dos seus rostos. Por isso “Dez rostos é um grupo poético e não dez pessoas que participam numa antologia: como grupo poético ele pode ir mais longe, pois o congraçamento é mais prolixo e profícuo.”[1]
* 10 Rostos da Poesia Lusófona, coletânea de poemas de autores brasileiros e portugueses. Organização: Fernando Oliveira. São Paulo, All Print Editora: 2008.