Sonia Regina - Prefácio de As Cinquenta Primeiras Criaturas



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As Cinquenta Primeiras Criaturas *



PREFÁCIO


A modernidade foi a fase das grandes narrativas e das grandes sínteses, um pensamento universalizante e consensual, numa linearidade restritiva que impôs uma fragmentação. O modelo cartesiano varreu o singular e a diferença. Foi o paradigma da disjunção. Tudo foi condenado à separação: corpo, alma e emoções, sujeito e objeto, ser humano e natureza, interioridade e exterioridade, o ‘eu’ e o ‘outro’ e assim sucessivamente. Expulsos o subjetivo, a emoção e o desejo como entraves ao conhecimento, o ser humano perdeu-se de si mesmo e foi condenado a uma solidão terrível.

Se nos anos 60 do século XX nasceu um movimento de luta pela emancipação, pela diferença e singularidade - e as revoluções de 1968 o exprimiram -, nos anos 70 surgiu o neoliberalismo erguido sobre a fragmentação, hiperindividualismo e homogeneização. A junção destes três dispositivos de poder teve conseqüências trágicas para a construção de subjetividades e das sociedades. Sobreveio uma crise com raízes profundas no aniquilamento dos sujeitos destroçados por um padrão científico que os fragmentava até as últimas conseqüências existenciais. Esta criou uma máscara social para que não se soçobrasse no devir do mundo e se pudesse buscar a imagem do ‘eu’ em fuga e a cura da doença cognitiva da modernidade, provocada pela negação do olhar e da imaginação.

Deu-se, então, a tentativa de resgate das dimensões subjetivas mais profundas dos seres humanos - atingidas com a perda de sentido através do crescimento de um individualismo doentio e um pensamento único –, o que foi expresso nas artes. Tentou-se explicar como se chegou a ser-se o que se era, buscou-se a imagem – que escapulia - do que se era. Na literatura, o resgate de um ‘eu’ fragmentado, esfacelado.

Walter Benjamin propôs repensar o passado, ressignificar o presente e apontar para o futuro. Disse no livro Tesis de Filosofia de la Historia, acerca do quadro de Paul Klee intitulado Angelus Novus:


Sua cara está voltada para o passado. No que para nós aparece como uma corrente de acontecimentos, ele vê uma única catástrofe, que acumula sem cessar ruína sobre ruína e a lança a seus pés. O anjo quisera deter-se, acordar aos mortos e recompor o despedaçado.

Mas uma tormenta descende do paraíso e se arremoinha na suas asas e tão forte que o anjo não pode recolhê-las. Essa tempestade o empurra irresistivelmente para o futuro, ao qual volta suas costas, enquanto o cúmulo de ruínas sobe ante ele até o céu. Tal tempestade é o que chamamos progresso.


A alegoria de um anjo impotente diante da calamidade humana traduz essa visão do homem moderno que, sem alma e entre detritos, vive uma experiência histórica de fragmentação e ruína. Mas a tormenta também desvela a capacidade criadora e aponta para a possibilidade de se instaurar novas realidades.

“A arte não reproduz o visível, ela faz visível”, lembra Paul Klee. A escrita torna os silêncios visíveis, palavras são geradas por outras palavras, produzem e quebram sentidos. Uma escritura aponta para diferentes realidades e ocasiona efeitos simbólicos outros, que a repetição do mesmo.

O pós-modernismo rejeita e busca desconstruir qualquer noção de verdade que se proponha unitária, absoluta, universal - ou mesmo coerente. Em uma verdade plural não há uma única e verdadeira interpretação de um fato, de um texto ou discurso, mas muitas interpretações igualmente válidas.

O que é narrado e já acontecido não é verdade absoluta e pode-se fazer com que o passado diga outras coisas. Não há repetição: há um retorno em diferença, podemos dizer numa referência à tese do Eterno Retorno - o sentido da vida. No rumo criativo que toma atualmente a literatura o retorno nunca traz o mesmo, senão acrescido de significados. Não há a linearidade futuro-passado, há o movimento desse mesmo que sempre retorna próximo ao ponto de origem e dele se afasta - diferente.

Em As Cinqüenta Primeiras criaturas, o que poderia ser entendido inicialmente como criação de significados - os personagens ultrapassarem os limites de um único conto – vai além, acrescenta e redimensiona. Os mesmos personagens aparecerem em diversos contos e os poemas estarem inseridos entre eles tangencia a fronteira tênue entre realidade e ficção, substituindo a expectativa de autenticidade e verdade pela interrogação acerca da possibilidade e impossibilidade.

O amor e a felicidade pontuam a dor e a subjetividade é redefinida. Sonhos e desejos, turbulências, criaturas, o sagrado e o profano são menções iniciais que parecem nos dar um perfil que, ao longo das narrativas, vai sendo alterado face às ações. A essência nos escapa. Parece inacessível.

É a partir dessa noção de movimento que melhor podemos viajar pela escritura desse livro, sem ancoragem predeterminada ou idéias prévias. O proveito da leitura independe de referências que nos dêem um sentido totalizador ou homogêneo. As direções são variadas, não se pode fazer uma articulação linear.

Os cinqüenta textos vêm discriminados numa Lista de Dejetos. Já aí o autor nos fisga, convocando-nos como leitores pouco ou nada passivos. Aceitamos ser os identificadores finais dos elementos constituintes de um livro que leremos dispostos a supor que a extra-textualidade da narração nos auxiliará a lê-lo. Inferimos que o autor lançará mão de frases e elegâncias da língua para indicar o que, em suma, elas não significam; para nos fazer pressupor idéias nem tão ocultas.

Dejeto é lançar fora; resíduo; excremento. Oriundo do latim dejectus, significa ruína, grande estrago. Estão neste livro diferentes aspectos da ruína humana, lançados pelo autor através de contos, poemas e crônicas: histórias surpreendentes que evitam explicações e narram, com arte.

É sem submeter-se a significados manifestos que o autor mantém o pacto que a princípio estabeleceu conosco, de interagir através de narrativas literariamente intencionadas. Contudo, o livro não assume o encargo de suscitar questões metafísicas ou existenciais.

Em As Cinqüenta Primeiras criaturas Jorge Xerxes apresenta mundos possíveis e personagens que se deslocam pelos cenários em seqüências de fatos. Estranhos por vezes, incomuns - mas verossímeis. São narrados sem tarefas simbólicas: é a linguagem exercendo a ação através da escrita, e falando.

Natural de São João da Boa Vista, diz: “cresci ao pé da serra da Mantiqueira; por entre trilhas e cachoeiras; sempre em rota de colisão àquele verde inconcebível”. Talvez seja a São João da Boa Vista que se refere o poema São João da Boa Vida. Mas não é a conclusões esperadas que nos levam os seus textos inusitados, bem escritos, claros e sem exagero retórico: o autor explora bem sua sensibilidade e sugere, com domínio da língua e criatividade.

Efêmero é o presente e o hoje dos personagens diz da fugacidade de sua própria errância frente à realidade. São seres cujo sensorial é parte da percepção do mundo e o estranhamento deixa-os, por vezes, perdidos no simbólico. Assim vivem o mistério da condição humana. Reintroduzidos na imaginação e na linguagem, alternam de espaço e tempo em seus estados de vigília e de sonho.

Zero é o texto inicial do livro, no qual o autor constrói uma figura de si mesmo e relata episódios revestidos de uma intensidade narrativa menos pessoal e mais literária, como acontece no procedimento de autoficcionalização - em voga na narrativa contemporânea -, quando a deliberação ficcional rompe o confessional fazendo com que a narrativa auto-referencial se distinga de uma autobiografia.

Jorge Xerxes mantém-se recatado ao exprimir objetos distintos e, sobre seus escritos, propicia que incidam nossas reflexões. Todavia, o “eu” narrador lhe é somente circunstancialmente análogo. Embora o escritor se constitua como sujeito, não necessariamente o autor que enuncia e desenvolve aspectos da vida, do tempo e do mundo o faz através da escritura desse “eu”: sabemos que pode lançar mão da ficção para fazê-lo.

O fantástico é vivido pelos personagens como realidade, e vice-versa: o comum traz experiências fantásticas do cotidiano. O tempo é cíclico, o presente e o passado se interpenetram. Com frases curtas e impactantes, o autor mantém o controle das narrativas e a leitura dos cinqüenta textos flui por uma prosa consistente e bem elaborada. Procedamos a ela.


Sonia Regina





* HTML clipboard HTML clipboardXERXES, Jorge - As Cinquenta Primeiras Criaturas - Rio de Janeiro: Multifoco, 2010.